quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

CRISTIANISMO E TATUAGEM

Cristianimo e a tatuagem
Não é novidade, para ninguém, a relação tensa que a religião cristã mantém com a modificação corporal. Embora seja técnica milenar, com seus primeiros indícios antes mesmo do Egito Antigo, gravar “marcas eternas” no corpo sempre foi tabu para muitas das religiões mais modernas, como a judaico-cristã e a islâmica.
Mas as coisas mudam, e, principalmente no século XXI, mais e mais pessoas de vários credos têm aderido às mais diversas técnicas para modificar seus corpos, desde scalpelling, para alargar as orelhas; scarification, que nada mais é do que tatuar através de cortes com bisturis; e a própria tatuagem, a menos radical de todas as modificações, com as mais diversas intenções. Com isso, a arte milenar do desenho permanente e se propaga, mostrando-nos que sempre esteve presente na cultura e sempre estará.
Uma das mais notáveis façanhas da técnica é ter cativado mentes e corações de pessoas com culturas diferentes ao redor do mundo, em especial no Ocidente. Profissionais pioneiros como Sailor Jerry e inovadores, como Ed Hardy, foram responsáveis por ajudar a propagar essa cultura, aumentando, consequentemente, sua aceitação, ainda vagarosa. Aceitação essa que não deixa, nem mesmo, cristãos de todas as vertentes (católicos, evangélicos, espíritas…) de fora. Embora a ideia contrária às marcas no corpo que muitos adeptos do cristianismo ainda têm, outros já a veem como uma forma de mostrar apreço por seu deus.
“Uma vez, uma moça me falou ‘Ah, você pode morrer por causa dessa tatuagem, sabia?’. Eu respondi ‘Bem, que assim seja.’ ” – diz Anderson, tatuador de Curitiba, ao referir-se ao “Jesus” que tem escrito logo acima da sobrancelha. “Uma pessoa jamais imaginaria, ao olhar pra mim, que sou cristã, porque eu não estou vestida de “crente” – diz Mary, esposa de Anderson, também tatuadora e body piercer, que tem tatuado, em seu peito, Yeshua (“Jesus” na língua grega).
Cristianimo e a tatuagem
O casal Mary e Anderson, residentes em Curitiba
Para sabermos os motivos de alguns cristãos considerarem a tatuagem um ato pecaminoso, é preciso conhecer seus argumentos. Dois dos principais são bíblicos. Um, no livro de Levíticos: “Pelos mortos não dareis golpes na vossa carne, nem fareis marca alguma sobre vós. Eu sou o Senhor.” (Lv. 19:28), e outro em 1 Corintios: “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Co. 6:19). Mas há cristãos que não concordam com esses argumentos.
O pastor da Comunidade Golgota, Pipe, explica da seguinte forma o primeiro versículo: “Isto seria verdadeiro se a palavra, no hebraico, fosse, de fato, “tatuagem”, o que não é!” E segue, argumentando que a palavra “qa´qa” (usada da versão original da Torá) tem a sua etimologia obscura. O que os tradutores fazem, é associar que se trata de tatuagens, mas se trata de uma possibilidade e não de uma certeza. “Ga´qa” pode ser simplesmente “marca”, “incisão”. Assim, as traduções que trazem “tatuagem”, nada mais são do que uma escolha do tradutor, sem base segura na etimologia do termo. “Agora,” continua o pastor, “outra questão é que, digamos que a palavra ali fosse ‘tatuagem’ e ignorássemos o contexto da relação disso ao culto aos mortos. Dentro disso, então, teríamos uma lei, no Antigo Testamento, que proíbe o uso de tatuagens. Porém, o crente que olha para isso deverá, do mesmo modo, observar não apenas isso, mas toda a lei.” E cita uma pequena lista com algumas das regras descritas no capítulo:
- não permitir que se ajuntem misturadamente animais de diferentes espécies; (Vs.19)
- não semear sementes diversas, e não vestir roupa de diversos estofos misturados (VS.19);
- não comer coisa alguma com sangue (vs.26);
- não cortar o cabelo, arredondando os cantos da cabeça (VS.27);
- não danificar as extremidades da nossa barba (VS.27).
Pipe conclui, sobre a passagem de 1 Corintios: “A primeira coisa é que, nesse caso, do corpo ser Templo do Espírito Santo, um brinco seria violação ao templo. E dentro disso qualquer alimento nocivo à saúde jamais deve ser consumido. Assim, sobraria pouca coisa para ser consumida. Segundo, é que quando Paulo trata a questão do Templo do Espírito Santo, ele se refere à prostituição: “Não sabeis vós que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo, e os farei membros de uma meretriz? Não, por certo. Ou não sabeis que o que se ajunta com a meretriz, faz-se um corpo com ela? Porque serão, disse, dois numa só carne. Mas o que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito.
Fugi da fornicação. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que fornica peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” Portanto, usar esse argumento é totalmente desfocado do seu devido contexto.”
Charlie, tatuador e body piercer, que também é um dos membros da mesma igreja concorda e defende: “Na Bíblia, desde Gênesis até Apocalipse, não fala nada sobrepiercing, nada sobre tatuagem como nós conhecemos hoje. Não tem base nenhuma. O que fala é sobre fazer marca em homenagem aos mortos, mas isso é inteiramente cultural, e é provável que essas ‘marcas eternas’ sejam cicatrizes causadas por autoflagelação, não desenhos.” E, ainda, quando perguntado sobre se já sofreu preconceitos por parte de cristãos, acrescenta: “Eu não ligo mais pra como eles, os cristãos contra tatuagens, vão me olhar. Eu tô na igreja pra servir ao meu Deus e amar os meus irmãos, não pra me preocupar com aparência.”
Cristianimo e a tatuagem
Charlie, tatuador e body piercer e membro da Comunidade Golgota
Rodrigo, cristão católico e também tatuador, defende que um dos principais fatores determinantes desse preconceito é a cultura, que vem de séculos atrás. “Com a Inquisição, a Igreja Católica reforçou essa ideia de que você não pode fazer nada que não dizem ser certo, não pode nem pensar diferente.” E reforça que, não apenas a religião, mas vários outros aspectos históricos, ajudaram a definir essa ideia de que tatuados não apenas não podem ser cristãos, mas tem necessariamente de ser pessoas ruins. “Lá pelos anos 30, 40, os presos tinham um número de identificação tatuado, daí, quando eram soltos, as pessoas olhavam praquilo e já sabiam que aqueles caras com aquelas marcas foram marginais.”
Ma,s mesmo com todo o preconceito, tanto explícito quanto por “debaixo dos panos”, é notável a facilidade com que muitos lidam com a questão hoje em dia. Desde adolescentes até os mais idosos; cristãos, budistas, muçulmanos, judeus, enfim, todos estão aceitando como algo cada vez mais comum, isso se já não aderiram às técnicas de modificação.

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